terça-feira, 4 de novembro de 2008

Quem é a vítima?

São Caetano do Sul, SP, 14 de fevereiro de 2008. Uma quinta feira de sol, aproximadamente 17 hs. Acabara de voltar de Mauá, cidade onde eu estava trabalhando, para realizar um exame médico admissional do que poderia ser a possibilidade de meu novo emprego. Este dia foi mais um daqueles que a gente nunca se esquece em nossas vidas, tanto pela forma como foi quanto pela problemática social embutida no tema. Após fazer um exame de vista em uma clínica de olhos localizada na rua Baraldi, parei em uma ótica quase em frente à mesma para consultar o vendedor sobre preços de óculos e afins. Estava vestido com calça jeans, tênis e camiseta. Também havia comigo uma mochila cheia de roupas sujas de serviço. Conversava normalmente com os donos da loja, que me passaram à impressão de serem pessoas simpáticas. Não estavam tratando bem o cliente apenas por se tratar do habitual “o freguês tem sempre razão”, mais sim por que pareciam pessoas de bom coração. Estávamos somente nós três, eu e o casal, quando ouvi passos rápidos e uma voz dizer em alto e bom som: “Larga a mochila no chão, não olha pra trás, ponha as mãos na cabeça e encosta na parede!” Obedeci à ordem dada a mim e numa rapidez enorme já havia um homem me fazendo uma revista. Enquanto um deles me espremia com as mãos querendo achar algo em meu corpo o outro empunhava apontada em minha direção, mais precisamente em minha cabeça, o que me parecia ser – digo parecia por que não sou especialista em armas de fogo – um rifle calibre 12. Os donos da ótica estavam mumificados, pálidos e com medo. O policial que me fez a revista percebendo o desconforto dos lojistas tratou de começar a acalmá-los, enquanto o policial que me apontava a arma deu uma nova ordem: “Cola lá fora pra gente trocar uma idéia”, disse em voz baixa. Fui caminhando com as mãos ainda na cabeça e saí quase em frente à avenida Goiás, onde carros e mais carros com gente curiosa me fitando passavam lentamente. O homem agora já sem armas em punho me olhou bem nos olhos e me questionou: “E ae, qual é a fita?” Eu respondi a ele: “ Nenhuma, eu acho que...” Cala a boca, ainda estou falando, disse o soldado. Onde você mora? Trabalha? Ta devendo algo pra lei? Tem passagem? Cadê seus documentos? Moro no bairro do Rudge Ramos senhor, trabalho em Mauá, não devo nada a lei e não tenho passagem. Meus documentos estão no meu bolso de trás, posso pegar?, perguntei. Ele me deixou pegar a carteira. Pediu para eu abri-la e pegar meu RG e tal. Viu que havia um documento meio esverdeado junto e perguntou do que se tratava. Eu lhe disse que era o documento do meu carro. Pegou também e chamou com um grito só seu parceiro que ainda estava dentro da ótica. Enquanto um vinha de dentro da loja o outro foi à viatura pesquisar informações sobre minha pessoa. O meu novo acompanhante parecia estar meio sem graça pela situação e começou a me perguntar coisas do tipo: “Que time você torce? Quantos anos você tem? Qual sua profissão? É casado cara? Pôxa, você que é feliz hein velho, se eu fosse solteiro... Olha, eu sei que é ruim, mas estamos fazendo isso para sua segurança também viu, esse é um procedimento comum da polícia militar.” O breve papo acabou, ficamos os dois ali, meio amarelos. O outro voltou, passou por mim e nem olhou na minha cara, entrou direto na loja. Fiquei sem entender nada. Deu um novo grito lá de dentro dizendo que eu poderia entrar. Autorizado, adentrei novamente o recinto e vi o tal sujeito dizer assim aos donos da loja: “Olha, desculpem o transtorno, fazemos isso para garantir a integridade física de vocês, nunca se sabe né? Passamos ali na porta, vimos vocês sozinhos né, com um rapaz...” Ponderou a fala o guarda. Tive a vontade de lhe dizer para continuar a frase, dizer claramente que viu o casal sozinho na loja com um rapaz suspeito, suspeito só por ser negro, apenas por isso, e pensou que ele fosse assaltar o comércio, mas calado fiquei. Ele deu boa tarde ao casal, passou por mim novamente sem me olhar no rosto e apenas ergueu a mão me entregando meus documentos. Saíram os dois e eu fiquei ali, sem chão, com uma sensação meio ruim. Não me senti humilhado, nem nada disso. Apenas senti mais uma vez na pele que o problema da discriminação racial ainda não está próximo de um final feliz. Acho até que não verei o dia em que todos os homens concordem, como queriam Bob Marley e Martin Luther King. Tomei uma água com açúcar que o casal ofereceu e fui embora. Final triste? Não, de jeito algum. Passada uma semana deste episódio consegui o emprego citado no início do texto! Bola pra frente!

Marcos Paulo Moreno Felix/ jornalista formado pela universidade IMES em dezembro de 2007
Texto baseado em fatos reais
17/06/2008

ps: Este texto possuí alguma gírias para tentar expressar melhor a linguagem usada pelos policiais. A palavra “fita”, no caso, seria uma pergunta como: Qual é o plano?
Eu usei propositalmente a palavra senhor para deixar claro às pessoas como os policiais em geral fazem questão deste pronome de tratamento quando alguém lhes dirige a palavra

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns negril, texto de muito conteúdo, muito bom e muito bem escrito! Adorei!
Beijos
Raquel

Fernanda Lucia disse...

Nossa nego desse jeito irá roubar o emprego de muita gente,rs...Tenho orgulho de vc e, principalmente, de ser sua amiga!
Parabéns, pelo talento e humildade sempre!!!São pessoas como vc que fazem toda diferença...
beijocas

Unknown disse...

Queria muito que esse pilicial fizesse algo do tipo com um Juiz ou Promotor!!!!

Fico até imaginando....rsrsrs